“Nostalgia de Alfama”: Cartas Ficcionais de António dos Santos
by on Junho 17, 2017 in De rua em rua

Meu bem,

Só as tuas cartas me podem confortar nesta viagem. Sei que és o meu porto seguro e sempre serás.

Conheci tanta gente nestes últimos meses. Ouvi tantas histórias, tantas convicções e tantas derrotas que fico sempre a pensar que somos todos semelhantes, independentemente do lugar e da circunstância em que nascemos.

Há alturas em que temos ficado completamente sós e longe da terra. Das primeiras vezes que fomos para o mar, experienciei uma sensação de liberdade, como se fosse simples afastarmo-nos da rotina e não existirem amarras a prender. E não temos mesmo nada a prender-nos na nossa vida diária. Tudo pode ser novo em cada instante.

Deveríamos imaginar cada dia como sendo único e irrepetível. Seria tudo tão simples se as horas não fossem contadas. Porque na verdade o tempo não existe. Por isso será sempre precioso o que vivemos e até mesmo o que não vivemos.

Lembro-me sempre do momento em que te encontrei em Lisboa. O teu sorriso terno quando nos conhecemos no bailarico da noite de Santo António no Largo de São Miguel. Aquele meu jeito tímido de falar, depois de encontrar os teus olhos que sorriam. Lembro-me tão bem de dançarmos toda a noite juntos. Daquela fogueira no largo e toda a gente a bailar à sua volta.  E quando queimei uma alcachofra durante o arraial para saber o que o destino nos trazia? Fiquei tão feliz quando voltou a florir em minha casa uns dias depois. Não sabia que Junho podia ser um mês tão cheio de esperança e alegria.

O dia em que fui falar com o teu pai para aprovar o nosso casamento foi o mais difícil para mim. Quando me sentei com ele na mesa, tremia por todo o lado. Quando ele percebeu o meu estado, logo depois de eu começar a gaguejar, soltou um riso e disse que sabia perfeitamente o que eu ia pedir-lhe. Por incrível que pareça, deu-me o melhor conselho que podia ter ouvido naquela altura. Quando lhe expliquei quais eram as minhas intenções, disse-me que só podia respeitar o que nós sentíamos. Avisou-me apenas para ter muito cuidado com as noitadas e as cantigas. Pediu-me para procurar um emprego mais estável, porque pressentia que os tempos não iam ser fáceis. Embora eu recebesse um bom salário, ele entendia como podia ser duro criar uma família dessa forma. Anos depois, essa conversa fez ainda mais sentido quando tomei a decisão de iniciar-me na marinha mercante.
Talvez nunca te tenha dito, mas o teu pai ajudou-me bastante nessas decisões. Foram muito importantes as coisas que me disse antes de casarmos.

Outra grande decisão está para muito breve. Tenho estado a pensar em gravar um novo disco quando voltar, mas num estilo completamente diferente do que fiz até agora. As quadras que o Mascarenhas Barreto me escreveu são mesmo muito profundas e não há nada que me faça querer continuar naquele registo jocoso. Estou em busca de uma toada nostálgica em que as palavras têm mais peso e assentam sobre melodias simples e repetitivas. Ainda não sei como vou fazer, mas esta mudança pode ser determinante.´
Quero fazer algo que seja verdadeiro, que represente tudo o que eu tenho vivido nestas viagens. Preciso cada vez mais da tua presença e da tua esperança na minha vida.

Amo-te imensamente

Do teu António

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